Este ano já caiu neve em Janeiro e anuncia-se para Fevereiro a queda de mais alguma. Não vi a de Janeiro, certamente também não verei em Fevereiro e, a bem da verdade, já não vejo cair neve há muito tempo, pois se ela é escassa onde era suposto cair, muito mais é por aqui onde habito. Confesso que tenho saudades e achei que era um bom motivo para rever algumas fotografias, da mesma "leva" do ano de 2018 já aqui publicadas com "apontamentos" sobre a serra, a neve e a paisagem. Porém, sempre que do céu cai a branca neve traz com ela memórias profundas do tempo em que visitava a minha aldeia com abundância e entrava por todo lado sem pedir licença.
Estas lembranças da neve é certo me levarão a escrever um texto demasiado longo para o que gosto de aqui deixar. Porém, não quero perder os "fios" que na minha memória ainda ligam essas vivências, histórias e momentos vividos e alongar-me-ei um pouco mais.
A neve é sempre um bom motivo para ir ao fundo da alma a esse passado que me marcou e dou por mim a pensar que, afinal, nem sequer me lembro da primeira vez que vi cair neve já que era acontecimento normal nos invernos e primaveras vividos. Acredito, porém, que terei ficado a olhar para aqueles flocos tão brancos e macios como se fossem o mais perfeito brinquedo que se podia ter, ainda que gelado, e se desfazia por entre os dedos.
Quando a neve tudo atapetava, brincar naquele "tapete" não cansava. Mesmo com frio, mesmo molhada, a sensação era sempre boa, divertida, cheia de ralhetes das mães ou de quem nos visse andar naquele desassossego, que não era para todos, por muitos terem obrigações com animais e outras tarefas impostas pela vida e agregado familiar de cada um.
Para mim, Maria rapaz, sempre a "pintar a manta" como dizia minha avó Ana a neve era um acontecimento e divertimento. Se era tempo de escola e o nevão cobria as escadas e ruas inclinadas da aldeia, por elas abaixo atirava a sacola dos livros e vá de escorregar naquela macies até onde fosse possível. Estraguei sacolas e pastas escolares, para além de dar pouca estimação aos livros com estas, para mim inocentes, brincadeiras
Sem roupas que protegessem nem calçado próprio para as invernias - e eu não me posso queixar que tive sempre sapatos! - a chegada à escola a tiritar de frio era o corre, corre, para o pé da estufa secar a roupa e os sapatos, mas nenhum desconforto tirava aquela alegria da brincadeira única e divertida naquele tapete, que às vezes não era suficientemente alto e fofo e deixava umas certas partes a arder e não era pouco!
As mãos também sofriam e, de tal modo, que um dia eram tantas as crianças a aquecer as mãos à volta da estufa que sem quer alguém apertou o cerco fazendo uma menina cair com as mãos em cima da estufa. Já não me recordo como se chamava nem de que classe era, pois, a sala tinha duas classes como era usual no tempo, mas lembro-me dos gritos e de todos a fugir para as carteiras com medo de acusação e castigo.
A Neve faz parte das melhores recordações da minha meninice pelo fascínio leveza ao cair do céu, pela forma como se juntava e podia ficar tão alta que nem um homem podia passar e pela brancura que tapava todos os telhados negros de xisto - ao tempo sinónimo de pobreza - tornando todas as casas bonitas. Beleza que afinal tinham, mas não sabíamos, porque ninguém veio informar que era um património único e obrigar a que fosse preservado. Só o Piódão teve essa sorte!!
A mesma neve faz também parte das mais tristes recordações por acontecerem mortes nas serranias à nossa volta. Não sei se já escrevi aqui sobre isto, mas a memória que tenho de um dos invernos rigorosos daquele tempo e de forma particular um que mais me chocou, foi a morte de um habitante da aldeia, que morava perto de nós no Barreiro, embora já não saiba especificar quem era, cujas filhas pequeninas minha mãe foi buscar para nossa casa aconchegando-as e dando-lhe de comer. A solidariedade era presença constante de uns para com os outros nas ocasiões adversas e eram sempre tantas. Valia essa cadeia familiar e comunitária para deitar a mão e levar pão nos tempos duros que se seguiam da viúves e orfandade.

Sabia pelos mais velhos que era importante cair neve em abundância para se entranhar nos campos, nos pastos e alimentar as nascentes, mesmo com os riscos acrescidos se ela caísse demasiado tempo para quem tinha animais nos campos que sob a dureza a intempere tinha de sair de casa com um nevão a cair, caminhar por veredas tapadas e fragas escorregadias, às vezes até a companhia de lobos nas imediações, mas tendo como único propósito chegar à fazenda para dar de comer e sossegar os animais.
Naquele tempo de sobrevivência e dias de labuta ninguém se detinha - ou muito poucos o faziam - a olhar a beleza da paisagem que pouco importava porque nem havia sequer vontade de apreciar demorada e devidamente aquele espectáculo tão grandioso que a natureza oferecia.
Em cada momento impunha-se avaliar os perigos de pessoas e animais, tomar as decisões certas para que nada acontecesse. Depois era chegar casa com uma valente molha, a tiritar de frio, mas sem nunca dar parte fraca por causa dos filhos. Por isso, quando se previa um nevão dos graúdos, os mais velhos tinham a percepção desses coisas informavam-se uns aos outros numa partilha salutar de sobrevivência que a todos beneficiava e havia quem trouxesse o gado para currais mais perto ou até para a "loja" que em regra todas as casas na aldeia tinham.
A neve durava semanas e, no caruto da Estrela, nos sítios avesseiros com a geada a cimenta-la esta durava de um de Inverno a Inverno como já escrevi algures por aqui. O que neva nos tempos de hoje na Estrela e nas aldeias à sua volta é uma pálida amostra da que caía outrora, o que acontecesse um pouco por todo o mundo com o aquecimento global a fazer mudar as estações e os climas de todos os lugares.
Estas, são memórias com mais de sessenta e cinco anos, num tempo sem agasalhos, nem calçado próprios para as intempéries. A água da ribeira e das fontes era tão gelada que fazia tremer e enregelar todos os ossos. As casas, valha-me Deus! Desprovidas que quaisquer confortos térmicos tinham nas minúsculas cozinhas o único reduto mais acolhedor e só apetecia ali ficar até dormir junto ao borralho onde se lograva algum abençoado calor.
Na realidade os rigorosos invernos dos nevões e vendavais que sopravam e metiam medo, o frio agreste e doloroso até para mim que tinha sapatos e algum agasalho dos ourelos de lã que minha avó vendia, ainda assim não escapava às frieiras nas mãos, às tosses cavernosas, ao tiritar das noites cujos ventos entravam por todas as "fisgas" e ao medo que o telhado voasse.
Porém, apesar de tanta dureza, a minha mente de criança guardou algo memórias únicas, talvez até idílicas daqueles gelados tempos. Acredito que essa memória era (é) de muitas outras crianças quando “mergulhávamos” sem medo no espesso e fofo manto branco que tudo cobria. Era como se fosse o nosso brinquedo mais precioso e tornava-nos "donos e senhores" do estendedoiro onde rebolávamos e da rua que era pista de gelo do "nosso mundo", sem sabermos nesse tempo o que isso significava.
Talvez, afinal, nem tudo fosse tudo bem assim... Mas sei que hoje guardo essas memórias que me fazem apreciar e muito agradecer tudo o que tenho e me mantém agasalhada, abrigada do tormentoso frio em casa, na rua e até na serra se lá quiser ir!