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domingo, 6 de março de 2022

HISTÓRIA DE GUERRA

ENTRE O SONHO,  A DOR E A VIDA

Era jovem, ainda não completara 21 anos, e tinha nos olhos o brilho que dá cor aos sonhos e a luz irradiante de todas as grávidas, pois estava prestes a ser mãe pela primeira vez!

Sem dúvida um motivo de grande alegria pelo filho tão desejado, mas também de muita ansiedade e preocupação, pois a guerra que até ali parecia longínqua estava agora à porta sem que ninguém se desse conta de como se tinham extremado as posições e ignorado as promessas de inúmeras conferências e acordos sobre a paz.

Paz, o desejo mais premente de tanto coração dilacerado depois de anos de guerra e tanta vida ter ceifado.

A paz, ténue linha que segura a bondade do coração foi uma miragem e os dias passaram a ser de sobressalto, de bombardeamentos a destruir estradas, caminhos, aldeias, vilas, cidades e a arrasar vidas aos milhares todos os dias.

O cenário era de horror, de incredulidade para quem ali vivia, mas acalentava em cada dia a esperança de que houvesse alguma luz e solução para terminar o conflito, e todos procuravam seguir em frente nas suas vidas cumprindo horários e rotinas possíveis.

Acontecia muitas vezes que quando os bombardeamentos acalmavam se corria de casa para o trabalho ou vice-versa, aproveitando também o momento para as compras possíveis.

A jovem lá ia trabalhar, saía de carro, o marido a guiar, a barriga bem proeminente protegida com as mãos, e em reflexo de ingenuidade encostava-se no assento, bem para trás, alimentando a ilusão de que se houvesse tiros eles passariam, de certeza, ao lado!

Ao princípio da noite, quase no final de Junho, num dia que aparentemente tinha sido calmo, se é que se pode falar em calma quando estamos no meio de uma guerra… começaram a desenrolar-se os primeiros sinais de que o parto iria acontecer...

Deu então entrada numa casa de saúde, que por via da guerra já estava a sentir a falta de meios principalmente humanos, e com apenas uma parteira a dar resposta à casa de saúde, à maternidade ou aos partos que aconteciam em casa por não haver condições de levar as parturientes até lugar mais seguro.

Feita a avaliação, o parto ainda estaria demorado, o marido foi mandado embora, porque infelizmente naquele tempo não era permitida a presença do pai no nascimento.

Apesar de não estar para pressas – de acordo com a parteira – mas não havendo ali no momento mais parturientes e por uma questão de logística… foi encaminhada para a sala de partos, e ali ficou completamente só com os seus pensamentos, de coração apertado, sem uma mão que segurasse a sua ou uma voz a sussurrar-lhe confiança e a tirar dúvidas e receios.

Pensava no marido, na mãe, que lhe fazia ali tanta falta, falava com o bebé, gemia, chorava, rezava e também gritava com Deus... aterrorizada, sem saber o que fazer.

O conselho deixado para estar quieta na cama e esperar, assim sozinha, era por demais absurdo e impossível de acatar com as águas rebentadas, uma cama encharcada e sem viva alma que ali acudisse.

Depois de mil insistências no toque da campainha lá apareceu uma auxiliar, ensonada, certamente a tentar descansar e repor o sono que em casa não tinha tido condições de fazer, pois as metralhadoras não paravam de "cantar" noite e dia, as granadas de morteiro, rockets e obuses a rasarem telhados e a rebentar em qualquer casa, com os gritos e incêndios que se seguiam, descansar nesta condições revelava-se tormentoso e impossível.

Com pouca vontade a auxiliar lá mudou a cama, ajudou-a a jovem parturiente a voltar a deitar-se, fechou a porta e desapareceu sem olhar para trás!

Não tardou que tudo voltasse a ficar molhado. E ela sem perceber...ninguém a tinha avisado!

Como era possível ter dentro dela tanta água que não parava de correr? Parecia-lhe um rio em plena estação das chuvas e a transbordar furiosamente as suas margens.

Tiritava de frio, de medo, olhava constantemente o relógio na parede à sua frente, que alheio a tanto sofrimento ia avançando minutos e horas no seu tic-tac, mas lhe parecia tão lento no seu rodar… 1h... 2h... 3h...uma eternidade!

As forças foram-se perdendo e quase a entrar em choque, sentiu a parteira entrar desabridamente na sala, dar ordens, mas logo se aproximou com voz calma e carinhosa. Pegou-lhe na mão e, por momentos, a jovem esqueceu tanto abandono, desamparo e desesperança.

Sabia que a dona daquela voz, com o seu saber e as suas mãos seriam a única salvação do seu filho, o alívio para o seu sofrimento, a esperança e a certeza de que já não estava só dentro daquelas quatro paredes feitas prisão e a "lutar" para no último momento não perder a lucidez mental e deixar-se ir...

Eram 7h00 da manhã e o bebé já deveria ter nascido!

Não nasceu, unicamente porque desceu de lado e ficou com a cabeça presa. Estava em risco de vida! Sem tempo nem condições para cesariana a opção foi a ventosa… horrível, é claro, naquele arrancar das entranhas que parece chegar até ao mais íntimo da alma e do coração.

De repente, porém, ouviu-se o grito de vida do recém-nascido e tudo pareceu agora um pesadelo que tinha terminado!

Que belo menino, mãe, disse a parteira!

A alma e o coração aquietaram-se com aquele presente de Deus agora nos seus braços da mãe. Afinal, Ele foi o único que esteve sempre ali, e, certamente a conjugar esforços para que houvesse o tempo necessário a permitir-lhe abraçar aquele menino loiro, rosado, de olhinhos abertos e profundidade azul a procurar agora o aconchego do seio materno. Era o bebé mais lindo que ela alguma vez tinha visto, como são os filhos de todas as mães! Encostou o seu rosto naquela pele macia, olhava-o sem cessar inundada de sentimentos de tanto amor e ternura que dela se varreu toda a angústia, dor e solidão.

As lágrimas marejaram-lhe os olhos naquela indescritível felicidade de ser mãe, mas também pela preocupação acrescida de proteger tão frágil vida numa cidade cercada e bombardeada.

E, pode dizer-se, foi o início de um verdadeiro calvário, como continua a ser para milhões de pessoas no mundo inteiro, com os filhos ao colo e pela mão, incrédulas com o que lhes acontece, a fugir da guerra, de coração partido, com vidas separadas e destruídas, na procura de abrigo, de paz e de pão.

As imagens de ontem, de hoje - que a guerra na Ucrânia nos mostra - e infelizmente as que virão amanhã não deixam lugar a dúvidas.

E a pergunta que nesses tempos longínquos, incessantemente, bailava na mente da jovem mãe continua lá hoje... e sem resposta.

Para que serve e a quem serve a guerra com o seu cortejo de horrores?

Nota: história real, a par de muitas outras, vivida na primeira pessoa em contexto de guerra. 

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