Partiu na sua última viagem em direcção a belos prados verdejantes, o último dos Eremitas das Barrocas do Muro, que vai a sepultar amanhã em Sobral de S. Miguel, juntando-se na derradeira morada aos que anteriormente também por aquele local peregrinaram.
O Ti Manel Forte, como era por nós conhecido, vizinho do pé da porta nas Barrocas do Muro, tal como o meu pai e muito antes a minha avó, faziam das Barrocas do Muro o seu "porto de abrigo" e ali viveram em permanência semanas e meses a fio.
Minha avó Ana Bárbara, creio, terá sido a pessoa que mais tempo viveu nas Barrocas do Muro, mas o Ti Manel foi seguramente o que se lhe seguiu, mas vivendo ali de uma forma bastante diferente da minha avó e de meu pai.
No tempo de minha avó o movimento de pessoas nos campos e nos caminhos era constante, e pode dizer-se que não faltava companhia, logo desde os primeiros alvores da madrugada até já a lua e as estrelas alumiarem as pedras das veredas, pelo que nestas condições nunca se estava sozinho nem totalmente isolado.
O tempo fez com que os campos fossem abandonados e os caminhos despovoados, pelo que estar nas Barrocas do Muro a partir de 1975 era muito diferente. E, se por um lado o meu pai procurava companhia no Pereiro ao final de quase todos os dias, e ao fim-de-semana rumava ao Sobral, a forma de estar na vida do Ti Manel era muito diferente, e a solidão a que voluntariamente se entregava era a companheira dos dias e noites, deslocando-se ao Sobral só em caso de necessidade, bem como a França onde trabalhou durante muitos anos.
Depois da morte de meu pai, encontramos o Ti Manel algumas vezes nas Barrocas do Muro, e, ironicamente, quando dava conta de nós subia logo do chão onde andasse para conversar com o meu marido, dispondo-se a ajudar e ensinar alguma coisa que fosse preciso.
Foi sempre simpático no acolhimento que nos dispensava e fazia questão de manter o caminho limpo até às palheiras e deu permissão - mesmo que lá não estivesse - de levarmos o carro até à que era dele para ser possível lá virar.
A idade foi avançando, as fragilidades foram-se acentuando e o Ti Manel deixou de limpar o caminho e também a levada que lhe levava a preciosa água da nossa presa - desde a morte de meu pai só usada por ele - e lhe regava as courelas.
Um dia fechou-se a porta do palheiro. O carro, companheiro de uma outra vida, para ali trazido pelo dono, foi com ele envelhecendo e permanece esquecido, esventrado e ainda mais degradado depois do incêndio que tudo varreu à volta.
O silêncio paira agora nas Barrocas do Muro. Há uma dor acentuada pelo negro que tomou conta da paisagem. Sente-se uma névoa baixa de frio a descer de mansinho desde a presa do chão do Ti Zé da Ponte e da Tia Penteira que varre toda a encosta até ao Penedão, deixando no ar uma tristeza de arrepiar o coração.
Mas as vidas, as histórias e as memórias de quantos aqui viveram ficaram agarradas às pedras dos caminhos que abriram, dos palheiros que edificaram e dos muros que levantaram e sustêm estas terras. As suas vozes ecoam no tempo e falam-nos no vento, na água das presas, das minas e das levadas, nas noites cerradas mas também de luar, na esperança de que sejamos merecedores do seu legado e capazes de voltar a dar vida a este belo lugar.
Neste dia da partida do Ti Manel Forte, a que chamo o último dos eremitas, a minha homenagem e até um dia.
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